sexta-feira, 29 de março de 2013

O jogo político

O jogo político

jogo político
Mesmo o mais alienado dos cidadãos desse país percebe que vivemos momentos turvos e complexos no que se refere a direitos humanos e liberdades, coletivas ou individuais. Não é pior ou igual ao período da ditadura militar. Óbvio que não. Toda a luta da esquerda até aqui impulsionou — não tenho dúvida ou medo de atribuir isso à esquerda — melhorias na qualidade de vida para os mais pobres, desde a diminuição da taxa de mortalidade infantil e jornada de trabalho até o acesso a serviços públicos. Mas está longe, muito longe, de podermos relaxar, sob qualquer aspecto.
Apesar da propalada democracia, temos um Estado altamente repressor e coercitivo. Não há uma única manifestação nesse país, além das religiosas (e talvez isso não seja apenas coincidência), que não seja reprimida. Sempre as mesmas cenas: polícia batendo, jogando gás de pimenta, um aparato sempre desproporcional ao tamanho da manifestação e a “criação” do clima do terror, com policiais à paisana em meio aos manifestantes fazendo fotos, helicópteros sobrevoando, armas sendo exibidas, provocações, policiais sem identificação na farda. Não é de hoje que denunciamos. Não é de hoje que observamos.
Sempre que há uma “direitização” na política fica a impressão de um perigo iminente oferecido pela esquerda — ou pelo menos é isso que sempre tentam nos fazer acreditar. Foi essa a justificativa para o golpe militar de 1964: “o perigo comunista”. Reforçavam os golpistas e seus apoiadores o boato que os comunistas eram capazes de atrocidades e “nossos salvadores da pátria”, “honrados”, nos livraram dos “terroristas comedores de criançinhas” COMETENDO ATROCIDADES. Mas como isso ficou nos porões e os porões foram fechados, o boato ainda persiste.
Não estou dizendo que a esquerda é santa e boazinha. Eu faço parte da esquerda que nasceu criticando as atrocidades do chamado socialismo real (experiências socialistas que foram endurecendo e cerceando a liberdade e se burocratizando e, por consequência, se perdendo, deixando de serem socialistas). Somos todos humanos, vivemos numa sociedade estruturada sobre preconceitos e a cultura da violência. Sempre lembro que o único animal capaz de articular, planejar, elaborar e executar a maldade é o ser humano. Mas também que a única chance de nós, humanos, termos uma vida com o mínimo de justiça e paz é num sistema que tenha o humano como parâmetro, e não o dinheiro ou coisas.
“O liberalismo pensa estar defendendo o indivíduo quando nega a primazia do social, ou diz que uma sociedade é apenas um conjunto de ambições autônomas. O culto ao individualismo seria um culto à liberdade se não elegesse como seu paradigma supremo a liberdade de lucrar, e como referência moral a moral do mercado. Se não fosse apenas a última das muitas tentativas de substituir o Ser Humano como a medida de tudo, e seu direito à vida e à dignidade como o único direito a ser cultuado. Já tentaram rebaixar o homem a mero servo de uma ordem divina, a autômato descartável de engrenagens industriais, a estatística sem identidade de regimes totalitários, e agora a uma comodidade entre outras comodidades, com nenhuma liberdade para escolher seu destino individual e o mundo em que quer viver. Mas o indivíduo só é realmente um indivíduo numa sociedade igualitária, como só existirá liberdade real onde os valores neoliberais não prevalecerem.” — Luis Fernando Veríssimo, trecho de O Parâmetro Humano (crônica publicada em Zero Hora ao final dos cinco dias do primeiro Fórum Social Mundial, em janeiro de 2001, em Porto Alegre-RS).
O golpe militar não foi para conter a ameaça comunista ou para manter a ordem. Ele fez parte de uma articulação internacional que beneficiou os EUA na dita guerra fria. Nós éramos/somos o quintal estadunidense. Não acredite em mim, assista a essa entrevista do professor Enrique Serra Padrós falando sobre a América Latina, com foco na Doutrina de Segurança Nacional e Operação Condor nos vídeos 1, 2, 3 e 4. Ou seja, não estamos falando de política como discussão/decisão coletiva sobre a vida das pessoas, mas sobre interesses políticos que geram lucro e poder. As pessoas no meio disso? Danem-se! Aí, sim, os comunistas (na verdade qualquer um que ousasse questionar o processo) viraram ameaça. Não era só a luta quase ingênua e romântica contra a truculência e por liberdade. Era a percepção de todo esse processo e a organização (mesmo que sujeita a cometer erros) para tentar de alguma forma barrá-lo.
Se com liberdade de expressão e organização é difícil explicar isso para as pessoas — uma vez que no pouco e raso de educação que temos não privilegiamos a formação de cidadãos, porque ao capital interessa formar mão de obra obediente –, imaginem sem!
Não é que a luta por Direitos Humanos seja maior ou menor que qualquer luta. É que não deveríamos lutar por direitos humanos. A vida deveria ter valor universal em qualquer sociedade, e o zelo por sua manutenção obrigação de qualquer Estado e ideologia. As disputas e discussões políticas deveriam se dar a partir dessa garantia.
Os sinais do processo de direitização que estamos vivendo são evidentes. O que já era ruim em termos de direitos humanos, só faz piorar. Há uma ameaça comunista? Queria que houvesse, mas não. Há sim, interesses maiores em bens públicos nacionais. Enquanto nos debatemos contra pastores evangélicos que decidiram se aventurar na política para aumentarem seu poder e lucros pessoais e que refletem e evidenciam todos os preconceitos estruturais dessa sociedade, grupos muito mais organizados que a dita bancada evangélica aumentam a passos largos o seu poder de influência em todos os poderes (executivo, legislativo e judiciário) da República. O moralismo religioso é apenas cortina de fumaça para esconder um jogo de interesses bem maior. Tal e qual durante a ditadura.
Ameaçar direitos humanos conquistados nada mais é do que nos desviar de outra luta para voltar atrás numa luta já vencida. A isso se chama estratégia. Talvez no nosso caso seja um chacoalhão para acordar todo mundo que estava parado, alheio a banda que estava passando. O que me parece é que a banda estava passando descarada demais, alegórica demais, e antes que alguém mais percebesse…
O que temos a ver com isso? Eu, tu, o BiscateSC? Somos a moeda de troco/troca na barganha do jogo político. É a nossa vida, nossos direitos que são rifados nas negociações da macro-política. Se negar a pensar sobre política é abrir mão do direito de pensar e decidir sobre nossas vidas. Não adianta se reafirmar biscate com orgulho se permitirmos que as decisões políticas que definem nossas vidas sejam tomadas por moralistas retrógrados.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Rússia à venda

Rússia à venda no e-Bay

27.03.2013, 23:59, hora de Moscou

e-Bay, Rússia à venda

AFP

O maior site de comércio eletrônico do mundo, e-Bay, retirou no início dessa semana de leilão um lote que propunha a vender a Rússia.

Recentemente a mídia russa divulgou informações de que um cidadão russo havia colocado o seu país à venda na Internet. O preço inicial do “produto” era de apenas US$ 0,01, mas logo os lances chegaram a quase US$ 100 mil.
O leilão estava previsto para continuar até 30 de março, quando, na segunda-feira, 25, foi descontinuado por motivos até agora não esclarecidos. Não se sabe se foi a administração do e-Bay quem salvou a Rússia do terrível destino de cair nas mãos de um internauta qualquer ou se foi o próprio autor do lote que por medo de consequências imprevisíveis resolveu interromper a brincadeira.
Curioso notar que esta não foi a primeira vez em que um país foi posto à venda no e-Bay em forma de um lote de leilão. Anteriormente, cidadãos insatisfeitos com a situação política e econômica de seus países já tentaram leiloar a Grécia e a Bélgica. Ambos foram retirados do e-Bay antes do fim de seus leilões.
-- Diário da Rússia

Slogan pro Viagra - Ernani Ssó


Slogan pro Viagra
Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.
Implicâncias
Pra rebater minha lista de preferências, Mário Goulart me pergunta sobre minhas implicâncias. Na verdade eu tinha pensado primeiro nas implicâncias, mas deixei pra lá porque falar delas é mais fácil, não? As implicâncias, como o próprio nome indica, estão no terreno do irracional e são folclóricas quase sempre. Quer dizer, a gente nem precisa se justificar.
1. O sorriso da Adriane Galisteu. Cada vez que vejo essa viúva profissional, a burca me parece um aparato dos mais louváveis.
2. Tenho ojeriza à palavra ojeriza. Minha ojeriza por ela só perde pra minha ojeriza às palavras elencar, protagonismo, experienciar e obstaculizar. Me dá uma coisa nos ouvidos, quando as ouço, pior que a pressão na aterrissagem.
3. Também mantenho distância da palavra relva. Talvez seja a palavra mais fresca em português. O dia que eu vir uma placa, numa praça, avisando que é proibido pisar na relva, me mudo de país.
4. Colina e bosque também têm um alto índice de frescura. Tanta gente criada no meio do mato ou cercada de morros e coxilhas vem falar em bosque e colina. Se não é tradutor, é publicitário, aposto.
5. Discurso em formaturas ou de agradecimento a prêmio recebido. Minha nossa, quando metem Deus e a mãe no meio… Nessas horas gostaria de ter um teleporte pra ir sentir vergonha bem longe.
6. Caras que citam Lukács. Posso ter dado azar, mas nenhum sabia do que falava.
7. Cachorro-quente, hambúrguer e coca-cola. Como é que um povo conseguiu a proeza de criar as duas piores comidas e a bebida mais intragável? Como, ainda, conseguiu desenvolver uma estratégia pra poder comer e beber essas porcarias em todos os lugares?
Quer a real? Me enchi desta lista.
Títulos
Nos tempos do Pasquim, o Ivan Lessa e o Jaguar tinham um personagem, escritor, que escrevia um romance chamado Lornhão da bauxita. Grande título. Praticamente imbatível, acho. Mesmo assim andei pensando em alguns:
1.  Pavana para um guacamole triste.
2.  Via de regra. (Trata-se, evidentemente, de um romance erótico.)
3.  O lorpa e outrens.
4.  A dama de sobrolho inefável.
5.  O façanhudo, o gabola e a virgem.
6.  As rubicundas de Anta Gorda.
7.  À sombra das pilosas em flor.
8.  A pororoca da Candinha.
9.  As galochas do finado.
10.  Pipilos e arrulhos. (Sonetos.)
11.  El fauno y la remolacha.
Talvez eu devesse dar uma de Jorge Luis Borges, um dia desses: escrever resenhas sobre esses livros. Ou melhor: fazer um concurso aberto a todos, menos a membros da Academia Brasileira de Letras, que com essa gentalha não me misturo. Os autores das melhores resenhas receberiam o título Miss Anta Gorda, ou Mister, se for o caso. O diploma seria uma anta gorda desenhada num guardanapo do buteco da esquina, se é que eu consigo convencer algum desenhista a entrar nessa jogada. Veremos.
Na escola
Eu não devia dizer, mas, sem lua, sem conhaque, fiquei comovido como o diabo. Depois que falei com várias turmas numa escola, crianças que tinham comprado meus livros quiseram autógrafos. Quando se entusiasmam com uma história, elas se sentem nossas amigas íntimas e precisam dizer isso bem de pertinho, se possível com as mãos. É provável que por trás disso esteja a necessidade de comprovar a realidade do sujeito, porque é bastante comum a fantasia de que livros surgem do nada, ou da cabeça de gente que já morreu há muito ou mora no estrangeiro. Enfim, uma menina aí de uns oito ou nove anos, sem saber o que me dizer, ficou me olhando nos olhos um bom tempo e me disse com a voz mais doce: “Como teus óculos são bonitos”.
Charla de Jorge Luis e Bioy Casares
Borges: “Admiram Saroyan por sua mensagem de esperança. Que importa a mensagem? O que é? Uma palmadinha no ombro? O que isso tem a ver com a literatura?”.
Bioy: “Hemingway dizia: ‘Quando tenho de enviar uma mensagem, vou ao correio’, ou coisa parecida”.
Borges lembra quando Donald Yates, que partia para o México, perguntou melosamente a Peyrou: “Qual é sua mensagem para os jovens poetas mexicanos?”. Peyrou, cansado, respondeu: “Diga a eles que vão pra puta que os pariu!”.
Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus amuletos.

Marighella

Marighella

by Pedro Henrique Gomes

Marighella não poderia ser um filme fácil, nem como documento histórico, tampouco como narração “biográfica”. E, de fato, o filme de Isa Grinspum Ferraz não se aborrece diante de toda complexidade que se anuncia. A ditadura enquanto tema, no entanto, caro ao documentário brasileiro, nunca aceita caricaturas. De homem que participou ativamente da resistência armada às forças opressoras instituídas pelo Estado após o golpe e mesmo muito antes do regime militar assumir oficialmente o discurso Nacional, Carlos Marighella é retratado tanto de uma perspectiva mais pessoal (Isa é sua sobrinha) quanto de uma vontade não de recolocar os objetos históricos a priori em “seus devidos lugares”, mas sobretudo de ressignificar a essência mesma da existência intelectual e política de um articulador (morto em 1969 pelas forças militares comandadas pelo delegado Fleury, em São Paulo, após troca de tiros) decisivo em amplas frentes à época do regime militar.
Memória de um tempo que pede para ser construída coletivamente, como um processo de liberdade de consciência (histórica e posterior a História), no cinema (mesmo porque ao menos um pouco atordoados estamos em relação às práticas dos torturadores, ainda impunes), não arrefece diante da disponibilidade da objetiva em registrar: negar as narrativas impostas, mediadas por coerção e violência, colocar em disputa com a história do telejornal a questão primordial da supressão dos direitos e da legitimidade da atividade política e humana. Marighella, o guerrilheiro de base teórica consistente e compatível com as ideias de resistência que a luta armada demandava, num contexto todo específico que, em meio ao caos, desejava o desejo: poder desejar, poder ser. Esse levante biográfico surge da boca de um time insuspeito, de Carlos Augusto Marighella e Clara Charf (filho e viúva de Marighella) a Antônio Cândido, entre outros.
A noção de ação política que alimentava os movimentos que participaram da luta armada, diferentemente dos grupos que propuseram uma “resistência pacífica gandhiana”, partia do pressuposto de que só o corpo a corpo poderia devolver a democracia, e com elas os direitos básicos, ao povo brasileiro. O guerrilheiro urbano bebeu de fontes as mais diversas para compor seu referencial teórico, estético e político. Nos anos 1950, foi a China acompanhar de perto a Revolução Cultural; participou, em Cuba, da I Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade; escreveu um livro sobre Che Guevara; e, com o MR-8, se envolveu com as atividades que culminaram no sequestro do embaixador Charles Elbrick. É claro que estamos pontuando apenas algumas situações nas quais Marighella teve participação direta, mas já vemos que não é pouco. Um personagem e tanto! Um personagem, sobretudo, da História, pertencente à memória que vamos fazendo dela.
Entretanto, no filme de Isa Grinspum há desvios um tanto atrapalhados permeando as entrevistas, como a inserção de trechos de outros filmes para servirem de ilustração, mas que funcionam como muletas abertas a despotencialização do registro. Se por um lado a impressão pessoal da diretora sobre a matéria filmada (narrador-onisciente), a correlação de afetividades e intimidades que nos são evidentes, não se sobrepõem as necessidades históricas diante do objeto da narração, todavia não superam a caricatura no ambiente da representação formal das ideias. Já basta a força dos relatos e da própria “questão Marighella”, somadas a ocorrência bastante presente do imaginário construído a partir do mosaico de apontamentos e histórias que vão costurando os depoimentos. A beleza de Marighella age conscientemente captando os fragmentos desse espaço único de resgate que é o campo da memória cinematográfica: o lar dos deuses. O gesto belo (lembrem de Holy Motors, 2012) é continuar abrindo e nunca encerrando as possibilidades narrativas e, precisamente por serem diferentes, do papel do narrador.
(Marighella, Brasil, 2012) De Isa Grinspum Ferraz. Com Clara Charf, Antônio Cândido, Lázaro Ramos, Carlos Augusto Marighella.
Publicado originalmente no Papo de Cinema.

Machado de Assis e o Camaro Amarelo - revista bula


Machado de Assis e o Camaro Amarelo

Na década de 1980 as músicas sertanejas tinham entre os temas recorrentes o fim do amor, a dor (ou medo) de ser abandonado e a paixão não correspondida. Hoje, com o chamado sertanejo universitário, não apenas o estilo musical mudou — transformando-se num subgênero pop que, em muitos casos, são diferenciáveis entre si —, como os temas também mudaram. Não fiz nenhuma grande pesquisa para identificar os temas da atualidade, mas examinando minha mente, tentando buscar dentro da limitada quantidade de letras sertanejas universitárias que consigo resgatar, o tema que me vem à mente mais facilmente é: pegar mulheres (no plural, claro!).

Quem já ouviu a música “Camaro Amarelo” sabe do que estou falando, já que suas pobres rimas tratam aparentemente deste tema. Resumo aqui a ideia da letra: o sujeito da música nutria algum interesse não romântico por alguma mulher que o desprezava. Então, do nada, o sujeito recebeu a herança do pai e aplicou o dinheiro na compra de um carro. Modelo: Camaro. Cor: Amarela.
Eu poderia repetir o comportamento de alguns e criticar a música ao dizer simplesmente que o sujeito está comemorando, feliz da vida, por ter conseguido uma boa grana com a morte do pai — o que representaria um ato de muita insensibilidade (da parte do sujeito, não da minha). Poderia, inclusive, criticar aqueles que ouvem a música e celebram, em tons de alegria, a morte do progenitor do sujeito. Poderia, mas não o farei. É verdade que as músicas sertanejas, ou sertanejas universitárias, estão repletas de construções logicamente frágeis e esteticamente inexistentes que deixam transparecer a péssima formação do letrista — em que universidade ele estuda mesmo?
Aí veio a herança do meu veio,
E resolveu os meus problemas, minha situação.
Os versos acima ilustram o ponto da virada em que o sujeito mudou de vida. Reparem que, apesar de o sentido dos versos conduzirem para a constatação óbvia de que o pai do sujeito morreu, a letra não diz isto explicitamente. E se não está dito, resta interpretarmos. Lembremos que existe também a possibilidade de, estando ainda vivo, o pai do sujeito ter entregue a herança ao filho. Não há como atestar a morte. Esta leitura dupla é um dos elementos que dão charme aos grandes poemas; mas, pode acontecer de aparecer em músicas sertanejas também.
Tô na grife, tô bonito, tô andando igual patrão.
Este outro verso citado acima serve para analisarmos agora um pouco do raso perfil do sujeito. Ter comprado um carro caro o fez sair por aí “andando igual patrão”, mas não o transformou em um. É o típico caso do emergente que, por não ter uma boa base educacional-cultural, passa a emular o estereótipo daquilo que ele acredita ser o comportamento de alguém que possua dinheiro e alta posição social. Não que alguns endinheirados não sejam realmente caricaturas de si.
Mas, em que ponto entra Machado de Assis nesta história? Vejamos: no livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” o protagonista, Brás Cubas, é o típico burguês mimado pelo pai que não vê obstáculos na vida, conseguindo tudo que quer com seu dinheiro. Foi à Europa estudar e bacharelou-se mediocremente em Direito. De volta ao Brasil, nada fez para destacar-se tendo continuado a viver à custa do pai. A crítica do livro não estava centrada no fato de Brás Cubas ter dinheiro, mas sim no fato de ele ter dinheiro e ser uma pessoa de péssimo caráter. A fortuna de sua família não fazia dele alguém melhor, com valores melhores. De uma certa forma, ele era um parasita social, que ironicamente morreu antes de criar aquela que teria sido sua única contribuição para o mundo — um milagroso emplasto. Em resumo, ele pôde viver sua vida vazia ancorado em seu dinheiro e isto o livrou, de certa forma, do feedback social.
É aí que o sujeito da letra de Munhoz & Mariano se encaixa. Após receber sua herança, a única coisa que sabemos que ele fez com o dinheiro foi comprar um carro para pegar mulheres (no plural). Porque agora já não era mais interessante pegar aquela que o esnobou no passado e pela qual ele nutria interesse; pois estando num “padrão” acima, pôde demonstrar toda sua maturidade devolvendo o mesmo comportamento, esnobando-a de volta. Aqui se faz, aqui se paga? Afinal, ele pode escolher porque “tá sobrando mulher”. E não importa se a música repete o preconceito de que mulheres só se interessam por carro e dinheiro, pois os públicos masculinos e femininos apreciam a música da mesma forma. A pergunta é: será que eles têm noção de tudo isso? Será que o público continuaria cantando se analisasse melhor o que a letra diz?
Resta ainda outra comparação com a obra de Machado. Entendo que Brás Cubas foi um personagem criado para servir de crítica a um tipo de comportamento — o burguês de vida vazia. Já a letra da música reitera os comportamentos do sujeito: gaste seu dinheiro para devolver o desprezo que alguém te deu. Seja mesquinho! E que o público cante junto aplaudindo seu capricho infantil!
Uma professora minha da graduação dizia que a poesia (ai, que heresia dizer isto aqui!) primeiro deve ser sentida e depois entendida. Às vezes nos esquecemos disso, ou de sentir ou de entender. No caso de uma música em linguagem simples, sem inversão de frases e ideias muito elaboradas, o processo de compreensão deveria ser, também, mais simples e, portanto, mais comum. Não é o que vejo. Mesmo prestando pouca atenção neste tipo de letras, algumas vezes fico em dúvida se o público tem real compreensão do que está ouvindo.
Apesar das diversas entrevistas e apresentações dos cantores em programas de rádio, TV e internet, não vejo discussões a respeito das letras dos sertanejos universitários. E quando digo que as letras dos sertanejos universitários são ruins, a réplica pronta é no sentido de a música mexer com os sentimentos do ouvinte. Machado de Assis têm textos que, quando li, me causaram diversos sentimentos. Com o tempo, estudando um pouco e percebendo vários aspectos do texto que me passaram despercebidos na primeira leitura, aprendi a gostar ainda mais dos textos, porque eu somei o “gostar” com o “conhecer”. E como diria um professor amigo meu: “A gente gosta daquilo que a gente conhece”. Por que os defensores dos sertanejos universitários não gastam algum tempo tentando conhecer mais a fundo as letras cantadas por seus ídolos e buscam retirar delas algo além do óbvio? Acho que sei a resposta, mas não direi aqui.
É verdade que eu poderia me propor a esmiuçar a letra, mas meu interesse se perderia facilmente, então deixo esta tarefa para os universitários. E o tema da música? Depois de tudo que eu já disse, parece que “pegar mulheres” é o aspecto menos interessante da letra. Sendo sincero, depois de tudo que foi dito, tenho medo. Medo de que Machado de Assis não me perdoe por ter usado seu imortal nome numa vã comparação.

Sentou para o pipi e apagou.

Lucas Mendes: Fritando a frigideira

Atualizado em  28 de março, 2013 - 07:18 (Brasília) 10:18 GMT
No Brasil compra-se até quebrar, mas não se compra até cair. A expressão não existe em português. Em inglês, é "to shop until you drop" e em Nova York há brasileiros em colapso de compras.
No Eataly, na 5ª Avenida eu sou mais reconhecido e abordado do que em Belo Horizonte. Alguns tiram fotos comigo sem saber meu nome.
Falamos alto. É impossível não ouvir a conversa ao lado. Compras. Uma mulher contou que sentou na privada e dormiu de cansaço depois de um dia de consumo. Não caiu, mas sentou para o pipi e apagou. Foi acordada pela segurança.
Aqui tudo está mais barato inclusive a pizza e o espaguetone na frente da família que naquele dia fritou os cartões de crédito e vai voltar com malas mal educadas. Pais e filhos compraram de tudo, até milagrosas frigideiras francesas.
Uma das minhas brigas conjugais inesquecíveis foi por causa de uma panelona que tive de trazer do Brasil, que pesava, e ainda pesa, 20 quilos. Como decoração na cozinha é linda, gigante, preta com o aro dourado. Em cima do fogo? Três ou quatro vezes em trinta anos.
"Uma mulher contou que sentou na privada e dormiu de cansaço depois de um dia de compras"
Não quero me perder nesta história. Nossas classes A, B e a recém-chegada C vivem o furor do consumo nas lojas e na internet.
Assisto ao Bom Dia Brasil. Nossos consumidores consomem, mas têm queixas. O produto não cumpre o prometido na promoção, chegou com defeito, com atraso ou nem chegou.
Há leis e há o Procon, mas não funcionam como deveriam. Devolver o produto, brigar com o fabricante e recuperar o dinheiro estressam, consomem horas e nem sempre compensam.
E os americanos, inventores e campeões mundiais da sociedade do consumo?
São mais patéticos do que nós, emergentes deslumbrados, porque aqui há informação. No Brasil, não existe um Consumer Reports, uma publicação criada em 1936 e que hoje gasta US$ 21 milhões por ano testando de fraldas a automóveis nos próprios laboratórios e é implacável nas suas conclusões.
Consumer Reports condenou berços e carros, entre eles o AMC Ambassador e o Dodge Omni Plymouth. BMW e Grand Cherokee, da Chrysler, mudaram peças por denúncias da revista.
Fabricantes processaram e perderam. A revista tem mais de 7 milhões de assinantes, eu entre eles, um péssimo consumidor, mas que nunca comprou nada condenado pela Consumer Reports, tão rígida contra as empresas que na década de 50 entrou na lista de organizações subversivas com grupos acusados de comunistas.
E como você traduz "Good Housekeeping"? "Deixando a Casa em Ordem"?
Você compraria uma revista com este título? Deveria. Vai fazer 128 anos. A maioria das revistas americanas estão em crise, mas Good Housekeeping vai em perfeita ordem.
Seu segredo é a credibilidade reforçada pelo "Selo de Garantia", criado em 1909 e que, há mais de um século, promete e cumpre.
A revista não aceita anúncios de produtos que não passam nos testes dos próprios laboratórios. Vai além. Em 1952, quando os europeus fizeram as primeiras conexões entre cigarro e câncer, a Good Housekeeping parou de aceitar anúncios de cigarros. Para anunciar na revista é preciso passar pelos seus laboratórios de pesquisa, um tribunal de inquisição sobre a qualidade do produto.
A frigideira que não frige como promete está frita. Se frigiu, recebe um Selo de Garantia que pode colocar no rótulo ou nos comerciais. O efeito quase sempre é lotérico.
Quando um creme de pele que ia mal nas vendas recebeu o selo da revista, vendeu 2,2 milhões de dólares em apenas um dia na rede de vendas do canal QVC.
Comprou e não gostou? Chegou com defeito ou não cumpriu o prometido? Quem reembolsa o consumidor ou manda um produto novo é a própria revista. Sem talvez.
Brasileiros, antes de vir comprar até dormir na privada, entre no Consumer Reports ou na Good Housekeeping e pesquise até dormir ou cair do sofá.

Consumo de vinho na França cai e gera temor sobre ‘perda de valores’

Atualizado em  27 de março, 2013 - 13:45 (Brasília) 16:45 GMT

Vinho francês Miraval (arquivo/Reuters)
A queda no consumo de vinho foi registrada nas últimas três gerações
A queda no consumo de vinho na França nas últimas décadas vem gerando preocupação entre analistas e enófilos do país, que temem que a mudança seja um sinal da perda de valores considerados essenciais da identidade francesa.
Segundo dados do FranceAgriMer, um órgão de supervisão das políticas do Ministério da Agricultura e Pesca da França, em 1980 mais da metade dos adultos (51%) consumiam vinho diariamente ou quase todos os dias.
Atualmente este número caiu para 17%, e a proporção de franceses que nunca bebem vinho dobrou e chegou aos 38%.
Em 1965 a quantidade de vinho consumida per capita era de 160 litros por ano. Em 2010, a quantidade caiu para 57 litros e deve cair para não mais do que 30 litros nos próximos anos.
Em jantares na França, o vinho é a terceira bebida mais popular, depois da água de torneira e a água mineral. Por outro lado, refrigerantes e sucos de frutas estariam subindo rapidamente nas preferências.

Gerações

Segundo um estudo recente da publicação especializada International Journal of Entrepreneurship, as mudanças dos hábitos dos franceses podem ser percebidas claramente por meio das atitudes de várias gerações.
As pessoas com idades entre 60 e 70 anos cresceram com o vinho na mesa em todas as refeições. Para eles, o vinho continua uma parte importante de seu patrimônio cultural.
A geração seguinte, agora entre 40 e 50 anos de idade, acredita que vinho é algo que deve ser consumido ocasionalmente. Eles compensam o declínio no consumo, gastando mais com vinhos, pois, apesar de beberem menos, preferem um vinho de mais qualidade.
Membros da terceira geração, a geração da internet, nem mesmo se interessam por vinho antes dos vinte e poucos anos. Para eles, vinho é um produto como qualquer outro, e eles precisam ser convencidos de que a bebida merece o investimento.
Os autores do estudo, Thierry Lorey e Pascal Poutet, afirmam que o que está acontecendo é uma "erosão da identidade do vinho e de suas representações sagradas e imaginárias".
Cervejas (Getty)
Vinho agora precisa competir com a cerveja pela preferência dos franceses
A queda no consumo também ocorreu em outros países como a Itália e Espanha, outros produtores tradicionais de vinho. Mas, não prejudicou as perspectivas da França em termos de exportação do produto.

Declínio da civilização?

Mas o que preocupa analistas na França são os efeitos da queda do consumo do vinho na vida do país, na civilização francesa.
Eles temem que os valores franceses de convivência, tradição e apreciação das boas coisas da vida sejam esquecidos.
"O vinho não é um produto-troféu, que usamos para comemorar grandes ocasiões ou para exibir nosso status social. É uma bebida que deve acompanhar a refeição e ser um complemento do que quer que esteja em nosso prato", afirmou o escritor especializado em gastronomia Perico Legasse.
"(...) O que aconteceu é que (o vinho) passou de popular a elitista. É totalmente ridículo. Deveria ser perfeitamente possível beber moderadamente vinho de qualidade diariamente."
Para Legasse, parte do problema é a mudança na abordagem do país à alimentação e gastronomia como um todo.
"Durante muitos anos as pessoas vêm abandonando o que em nossa sociologia francesa chamamos de repas, ou refeição, (palavra) que significa reunião, convivência em volta de uma mesa, e não a versão individualizada e acelerada que vemos hoje em dia", afirmou.
"A refeição em família tradicional está desaparecendo. Em vez disso, temos um forma puramente técnica de nutrição, cujo objetivo é garantir que tenhamos combustível da forma mais eficaz e rápida possível."

História e trincheiras

Soldados em trincheira da Primeira Guerra Mundial (Arquivo/Getty)
Soldados bebiam vinho nas trincheiras; posteriormente bebida ganharia perfil 'elitista'
Não se pode afirmar que os franceses sempre consumiram as grandes quantidades de vinho que consumiam há, por exemplo, 50 anos.
Na Idade Média, o vinho era uma bebida comum, pelo menos nas regiões produtoras, mas era uma mistura fraca e, ao contrário da água, era seguro para beber.
A revolução de 1789 acabou com a imagem aristocrática que o vinho tinha na época, e as mudanças econômicas do século 19 ajudaram a popularizar a bebida.
Denis Saverot, editor da publicação especializada La Revue des Vins de France, afirmou que a ascensão do vinho refletiu a ascensão da classe trabalhadora, e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) consolidou a posição da bebida, fazendo com que normandos e bretões aprendessem a beber "nas trincheiras".
"Depois disso, na França, generalizamos o consumo de vinho barato, então, na década de 1950, havia estabelecimentos para beber, cafés e bares em todos os lugares. Vilarejos minúsculos tinham cinco ou seis. Mas este foi o ponto alto. O declínio do consumo volta (nos anos seguintes) até a década de 1960."
Todos concordam com os principais fatores que causaram este declínio: menos pessoas trabalham ao ar livre, então menos pessoas precisam das “qualidades fortificantes” do vinho.
Os escritórios precisam que as pessoas fiquem acordadas, então os almoços geralmente não têm bebidas alcoólicas.
A maior minoria da França, os muçulmanos, não consome bebidas alcoólicas, e o vinho também precisa competir com a crescente popularidade das cervejas.

Saúde e carros

Denis Saverot aponta também outros responsáveis.
Um seria a "elite burguesa e tecnocrata com suas campanhas contra bebida e direção e contra o alcoolismo, colocando o vinho na mesma categoria de qualquer outro tipo de bebida alcoólica, ainda que (o vinho) devesse ser visto de uma forma totalmente diferente", disse.
"Recentemente, ouvi uma autoridade de saúde dizendo que o vinho causa câncer 'a partir da primeira taça'. Isto vindo de um francês."
Para Saverot, o lobby de saúde e do politicamente correto significa que as elites preferem manter o país à base de antidepressivos em vez de vinho.
"Apenas analise os números. Na década de 1960, bebíamos 160 litros de vinho cada um por ano e não tomávamos comprimidos. Hoje, consumimos 80 milhões de caixas de antidepressivos, e as vendas de vinho estão caindo."
"O vinho é o mais sutil, mais civilizado e nobre dos antidepressivos. Mas, olhe para nossos vilarejos, o bar foi fechado, substituído por uma farmácia", acrescentou.
Para Theodore Zeldin, escritor francês que mora na cidade de Oxford, no sul da Grã-Bretanha, e observador veterano da sociedade francesa, a cultura mais voltada para negócios substituiu "companheirismo por networking", entre outros problemas.
Mas ele ainda tem esperanças.
"A velha art de vivre francesa ainda está aqui. É um ideal. (...) Claro que os tempos mudaram, mas ainda sobrevive. É aquele sentimento que você tem na França de que, em relações humanas, precisamos de mais do que conduzir os negócios. Temos o dever de entreter, conversar (...) E o vinho é parte disto, pois, com o vinho, você precisa dispor de tempo", afirmou.

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