Seria assumir lenda da meritocracia (“parabéns, vocês passaram no
vestibular”). Seria celebrar um privilégio enorme, de um sistema muito
desigual
Por
Marília Moschkovich, em
Mulher Alternativa
Essa semana começaram as aulas na Unicamp. Desde ontem pode-se ver
“bixos” em vários semáforos de Campinas pedindo “contribuições” em
dinheiro para festejar a chegada ao desejado ensino superior público
paulista. Jovens de todos os cantos do país, tamanhos, formatos. Mas nem
de todas as cores e com apenas algumas exceções em relação ao grupo
social predominante (algumas pessoas gostam de chamar de “classe”, mas
eu prefiro não usar esse termo aqui). O chamado “pedágio” é uma das
atividades mais tradicionais do trote universitário, pelo menos no
estado de São Paulo.
Enquanto opção pessoal – contribuir ou não com a compra da cerveja
para bixos e/ou veteranos (depende do curso) – não há grandes
controvérsias. Cada pessoa faz o que acha melhor e o que acha que deve.
Penso, porém, que esta opção pessoal seja também uma opção política. Na
minha posição política me recuso a dar dinheiro para a cerveja do trote.
Sim, já fui caloura. Sim, participei de pedágio. Sim, tomei cerveja
com dinheiro arrecadado. Meu problema está longe de ser a cerveja – que
não considero um motivo mais ou menos legítimo que nenhum outro pra se
pedir grana em farol. A questão pra mim é outra: a universidade pública e
o trote são privilégios sociais.
O conhecimento não é igualmente distribuído na sociedade.
Diferentes
famílias, de diferentes grupos sociais, dominam diferentes conjuntos de
códigos sociais, simbólicos e outros tipos de conhecimento e assim os
transmitem a suas crias. Só um conjunto muito específico destes, porém, é
considerado “legítimo” e dá acesso a oportunidades de ocupar posições
de maior prestígio, poder e renda (embora esta não seja sempre o cerne
da desigualdade social). As crias que dominam este conjunto específico,
“legítimo”, que a escola é encarregada de ensinar – e continuar
legitimando – e que é cobrado. Nos vestibulares, por exemplo, já saem na
frente antes mesmo de que seja dada a “largada”.
A meritocracia do vestibular é uma lenda. Seria talvez um pouco menos
lenda caso todos os candidatos com notas maiores do que X, Y ou Z
tivessem direito a vagas. Não é. Um candidato que pontuou exatamente o
mesmo do que outro mas é mais novo pode ficar de fora da universidade.
Não significa de forma alguma que esteja menos preparado. Pra ficar num
exemplo bobo.
Dar dinheiro para os calouros no trote, considerando que não dou
dinheiro para outros pedintes na rua e nem faço doações em dinheiro a
instituições “filantrópicas” (que muitas vezes não têm nada de “filo”,
por assim dizer), seria assumir que aquela “causa” é mais legítima que
outras. Seria assumir a lenda da meritocracia – “parabéns, vocês merecem
essa cerveja mais do que quem não passou no vestibular”. Seria celebrar
um privilégio enorme de um sistema educacional muito desigual.
Então comemorem, aproveitem a universidade, bebam muita cerveja.
Vocês, afinal, merecem. Não mais, porém, do que qualquer outra pessoa
que prestou – ou não – vestibular este ano.
http://www.outraspalavras.net/2012/02/29/por-que-nao-dou-dinheiro-para-a-cerveja-do-trote/