terça-feira, 10 de agosto de 2021

A Arte da Matemática

A arte da matemática “A matemática, vista corretamente, possui não apenas verdade, mas também suprema beleza - uma beleza fria e austera, como a da escultura.”. Esta afirmação feita por Bertrand Russell (1966) explicita muito bem uma ideia que muitos matemáticos acreditam: a grande beleza estética que a matemática possui ou que fazer matemática é fazer arte. Ao ouvirmos as palavras matemática e arte juntas rapidamente pensamos em áreas da matemática já popularmente consideradas belas ou em elementos da arte que possuem alguma base matemática, nestes casos os exemplos são diversos: a música ou obras de arte que utilizam da geometria para a criação de elementos harmônicos, temos também os fractais, a razão áurea, a sequencia e a espiral de Fibonnaci quando encontradas na natureza, entre muitos outros. É inegável a beleza estética que existem nestes elementos e também a complexidade matemática por trás deles, mas quando um matemático pensa na beleza da matemática não é disto que está pensando. A “suprema beleza” citada por Russell não vem destes elementos popularmente considerados belos mas sim na experiência e reação estéticas que podemos vivenciar quando nos deparamos com a matemática em sua forma mais pura. A questão da estética já foi abordada, ao longo dos anos, das mais diferentes formas. Para Platão é absurda a existência de “um todo privado de intelecto que fosse mais belo do que um todo com intelecto” (PLATÃO, 2011, p.98). Com isto, a beleza da matemática, para ele, é a maior de todas as belezas (ZEKI, ROMAYA, BENINCASA & ATIYAH, 2014). A psicologia abordou a estética de diversas formas, algumas se aproveitaram de teorias psicológicas já estabelecidas e apenas as moldaram para esta questão, como é a teoria da lei do menor esforço, em que na literatura, por exemplo, as obras mais belas serão aquelas que conseguirem exprimir o maior número de ideias com o menor número de palavras. Porém, desta forma teríamos que os teoremas e definições matemáticas seriam, inquestionavelmente, mais belos do que qualquer poema, conto ou romance. Um psicólogo muito conhecido, principalmente na área da educação, é o bielo-russo Lev Semienovich Vigotski que, apesar de suas obras mais conhecidas terem sido escritas na segunda década do século passado, possui abordagens sobre temas das áreas da psicologia e da educação extremamente contemporâneas, influenciando muitos pesquisadores e educadores atualmente. O pensamento de Vigotski possui muitas concepções que servem como base para a abordagem histórico-cultural da psicologia, assim suas obras mais conhecidas acabaram sendo aquelas em que ele elabora elementos para esta abordagem psicológica. Uma de suas obras pouco conhecidas é a Psicologia da Arte, escrita em 1925, seu primeiro trabalho a abordar a psicologia. Neste livro, o autor, ao estudar a reação estética, não apenas critica a lei do menor esforço. Para ele a reação estética parte, na verdade, da contradição de sentimentos e, em decorrência dela, a transformação de uma emoção em outra. “a lei da reação estética é uma só: encerra em si a emoção que se desenvolve em dois sentidos opostos e encontra sua destruição no ponto culminante, como uma espécie de curto-circuito.”(VIGOTSKI, 1998, p.270). Deste modo, as obras que nos suscitaram reações estéticas mais fortes serão aquelas que causaram o maior curto-circuito em nossas emoções. Mais do que uma criação humana capaz de nos suscitar emoções, Vigotski enxerga a arte como um meio de transformação humana, não apenas individualmente por meio de nossas emoções mas também de toda nossa sociedade. Vigotski acredita que através da arte podemos compreender melhor a condição humana e criamos a possibilidade de nos projetar para o futuro. Podemos compreender melhor estas ideias de Vigotski a partir da tese de doutorado de Patrícia Andréa Osandon Albarrán (2017), da Universidade de Brasília, onde a autora estuda o desenvolvimento de bailarinas com deficiência visual a partir da perspectiva histórico-cultural. Por esta perspectiva apesar de o aprendizado depender do desenvolvimento, o desenvolvimento também depende do aprendizado, ou seja, quanto mais o ser humano aprende mais ele se desenvolve e também quanto mais ele se desenvolve maior sua capacidade de aprendizagem. Desta forma, tornar-se uma bailarina não é algo restrito às pessoas com boa visão, mesmo pessoas com baixa ou nenhuma visão podem se tornar bailarinas, caso recebam estímulos que propiciem seu aprendizado e desenvolvimento. Nesta perspectiva e pelas palavras da autora podemos compreender a importância que a arte tem para Vigotski como forma de emancipação humana: “a arte emancipa o indivíduo de sua condição cotidiana por promover um tipo de experiência que muda qualitativamente os modos de percepção de expressão e representação. Por isso, a vida e a arte estão intrinsecamente relacionadas no processo de desenvolvimento humano.” (ALBARRÁN, 2017, p.45) Além de psicólogos, também temos muitos estudiosos e teóricos da arte que já abordaram a questão estética. Outra abordagem é a de PEREIRA(2011,p.115) que analisa que “qualquer coisa pode ser um objeto estético se estabelecemos ante ele uma atitude estética.” Apesar disto, estas experiências estéticas possuem diferentes valores, não de forma hierárquica mas de forma que uma possui uma natureza muito diferente da outra. “A experiência que podemos ter com uma peça de Bach, com uma música de Luis Gonzaga, com uma canção infantil, com o canto de um pássaro ou com o ruído de um trem não têm o mesmo valor. Sim, todas podem constituir-se experiências estéticas. Mas é inegável que há uma grande diferença de valor entre elas.”(PEREIRA, 2011, p.120) Uma relação simples entre números essenciais à matemática, como a relação de Euler, gera ao matemático uma experiência estética de igual, talvez até maior intensidade do que quando este se depara com uma música, escultura ou pintura. Além disto, a beleza da matemática não se resume a apenas a estas relações incontestavelmente belas por todas as pessoas que trabalham com matemática. Ao estudar, desenvolver e criar matemática é possível ter experiências estéticas com seus mais simples aspectos, seja com uma definição simples e clara, uma demonstração simples para um teorema complexo ou um teorema simples que não possui demonstração. “A beleza matemática está relacionada com a simplicidade das ideias e das demonstrações matemáticas, a sua inter-relação e as suas potencialidades de conexão com várias áreas da matemática, o seu carácter unificador, a sua maior generalidade, etc.” (OLIVEIRA, 2002, p.33) Pode ser que esta experiência estética venha da contradição de sentimentos que a matemática nos causa ao, por exemplo, nos surpreender quando um teorema encontrado em um caso particular é valido em casos gerais, como defende Vigotski, ou pode ser, como na abordagem de Pereira, que esta experiência existe porque temos uma atitude estética em relação à matemática. De qualquer forma, ela existe e é esta experiência estética, gerada por estes elementos, que causa toda paixão que uma pessoa tem pela matemática quando a compreende e sabe manipulá-la, é possível até mesmo um leigo em matemática encontrá-la com um pouco de ajuda. Voltando novamente a Vigotski, um importante conceito produzido por este é a zona de desenvolvimento proximal que todo aluno possui. Esta é uma região determinada pela distância entre o nível de conhecimento real e potencial do aluno. O nível de conhecimento real é definido por todos os problemas que o aluno consegue fazer só, o nível de conhecimento potencial é definido por aqueles problemas que o aluno consegue resolver apenas com a ajuda de colegas ou com orientações do professor. Dentro deste conceito, mesmo que um aluno não alcance esta percepção estética da matemática por si mesmo, é possível que o professor o conduza de forma que desenvolva seu conhecimento potencial, aumentando a zona de desenvolvimento proximal deste e assim o aluno perceba a experiência estética que pode ter com a matemática. Propostas para o ensino de matemática Ver a matemática como uma forma de arte transforma completamente nossa abordagem em relação não apenas a ela mesma, mas também em relação ao seu ensino. O ensino de matemática deixa de ser o ensino de uma técnica, método ou linguagem, para se tornar o ensino de uma arte. Ao ensinarmos matemática estamos ensinando a arte da matemática. É preciso que os alunos e professores tenham uma nova visão sobre o que é a matemática, os primeiros porque ao aprender matemática estão aprendendo uma forma de arte e o segundo porque este, além de professor é também um artista. Para que os alunos entendam que a matemática é uma arte é preciso que a vejam como arte. Um entendimento essencial para isto é que entendam e vejam a estética que existe na matemática, para isto não basta que o professor dê exemplos estéticos como a razão áurea e fractais, pois estes são exemplos pontuais da matemática e, como defendido anteriormente, não é esta a beleza da matemática que agrada a tantos e tantas profissionais. Também não é o suficiente que os alunos vejam uma relação ou uma demonstração esteticamente belas para entender a estética que existe na matemática, é preciso que entendam que ela está em todos os momentos de sua produção, para isto “a actividade investigativa dos alunos, em todas as suas vertentes e fases, deve ser apreciada esteticamente. A beleza matemática associada a uma intuição fecunda, a uma ideia inesperada, a uma boa estruturação lógica, etc., não deve ser subordinada a critérios utilitaristas de obtenção de resultados a todo o custo.” (OLIVEIRA, 2002, p.33) Com a compreensão da estética da matemática os próprios alunos poderão compreender melhor a matemática, por que uma determinada definição é mais aceita do que outras, por que determinadas demonstrações não são boas o suficiente e devem ser refeitas, por que determinado raciocínio não está bem formulado matematicamente. “A estética, ligada à perfeição das demonstrações, pode funcionar como um critério de eliminação de ideias matemáticas.” (OLIVEIRA, 2002, p.33) Além da compreensão da estética que há na matemática, há ainda outra mudança essencial no ensino de matemática, quando esta é vista como arte. Para se formar um bom e autêntico artista “não é o caso (deste) de dominar alguma fórmula nem de representar ou reproduzir fielmente um modelo.” (EUSSE, BRACHT & ALMEIDA, 2015, p.16). A obra de arte exige não apenas uma técnica bem aplicada, mas de criatividade, estética e até emoções como defendem muitos estudiosos de arte. Aparentemente então para se criar um bom matemático é preciso que os próprios alunos já tenham habilidades que estão além da capacidade de ensino do professor, mas apesar de que “ensinar o ato criador da arte é impossível, isto não significa, em absoluto, que o educador não pode contribuir para sua formação e manifestação.” (VIGOTSKI, 1998, p.325). A criatividade é uma competência, acreditada por muitos, como uma habilidade inata de cada indivíduo. Sujeitos criativos são aqueles que podem criar e imaginar coisas que a maioria das pessoas não são capazes, deixa de reproduzir algo que já existe para produzir algo nunca antes imaginado, como uma habilidade misteriosa, mas como VIGOTSKI (2009, p.20) afirma: “seria um milagre se a imaginação inventasse do nada ou tivesse outras fontes para suas criações que não a experiência anterior.”. Por isto podemos acreditar que “a imaginação sempre constrói de materiais hauridos da realidade. É verdade que […] a imaginação pode criar, cada vez mais, novos níveis de combinações, concertando, de início, os elementos primários da realidade. […] A atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da diversidade da experiência anterior da pessoa, porque essa experiência constitui o material com que se criam as construções da fantasia. Quanto mais rica a experiência da pessoa, mais material está disponível para a imaginação dela.” (VIGOTSKI, 2009, p.21-22) Então, diferente do que é acreditado pelo senso comum, a criatividade pode ser desenvolvida se for criado um espaço para tal. É possível então desenvolver indivíduos que sejam matematicamente criativos, mas para isto é preciso lhes fornecer elementos para que esta criatividade se desenvolva e para isto enriquecer sua experiência no campo matemático. “Quanto mais rica a experiência, mais rica deve ser também a imaginação. […] A conclusão pedagógica a que se pode chegar com base nisso consiste na afirmação da necessidade de ampliar a experiência da criança, caso se queira criar bases suficientemente sólidas para a sua atividade de criação.” (VIGOTSKI, 2009, p.22-23) A ampliação desta experiência não é algo tão simples. Não basta o professor mostrar métodos e percursos para se resolver problemas e pedir que estes o repitam em problemas parecidos, o aluno pode ser tornar um ótimo replicador, mas ainda ser incapaz de resolver um problema novo. Para Vigotski “a empatia seria uma forma de se ampliar o universo pessoal, por meio da arte, fenômeno a partir do qual o homem pode completar sua vida, incorporando experiências alheias.” (BROLEZZI, 2015, p.802). Brolezzi explica a empatia como a capacidade humana de se colocar na perspectiva do outro e assim conhecê-lo “incluindo suas ideias e sentimentos” (BROLEZZI, 2015, p.799). Neste entendimento, Brolezzi apresenta uma relação entre a empatia e a metodologia de resolução de problemas da matemática: “Nesta forma de trabalhar com problemas, os alunos são levados a discutir, a ouvir os outros, a entender diversas formas de pensar. Cria-se um ambiente de empatia, essencial na relação professor-aluno-conhecimento. O processo de entrar no lugar do outro, no sentido de vivenciar formas diferentes da própria maneira de pensar, parece ser bastante incentivado.” (BROLEZZI, 2015, p.806) Como exemplo para expressar estas ideias, tomaremos um dos problemas propostos por MALBA TAHAN no seu clássico O Homem que Calculava (2001, p.162-168). Após contar toda uma história sobre uma cela antiga de uma prisão em que, após um mago ter ficado encarcerado, foram encontradas todos os tipos de escrituras e entre elas havia também um problema matemático, Malba Tahan descreve o problema: Com 10 soldados, forme 5 fileiras com 4 soldados em cada uma. Um professor pode rapidamente apenas mostrar para os alunos que uma solução para este problema é uma estrela de cinco pontas, mas se deixado para os alunos resolverem por si mesmos, estes encontrarão diversos obstáculos que, a primeira vista, parecerá que o problema não possui solução, mas aos poucos, comparando entre si suas diferentes estratégias de resolução, encontrarão caminhos que propiciarão sua resolução, como perceber que as fileiras não podem ser paralelas entre si, que cada soldado deverá pertencer a pelo menos duas fileiras, entre outros, com os quais no fim poderão encontrar as soluções para o problema. Estes raciocínios lógico dificilmente poderão ser ensinados por um professor de forma expositiva, é apenas enfrentando os obstáculos de um problema que um aluno pode desenvolver estratégias para superá-los. Devido ao grande número de obstáculos que este problema possui, um aluno pode demorar muito tempo para conseguir resolvê-lo, mesmo trabalhando em grupos, não desanimar de solucioná-lo é algo que dependerá da importância que o próprio aluno vê em encontrar a solução. BROLEZZI (2015, p.807) também aponta que “o movimento da empatia, de colocar-se no lugar dos personagens e situações descritas, por meio do uso da imaginação, promove a criatividade.” Por isto, toda a história narrada por Malba Tahan antes de apresentar o problema é também de suma importância para a resolução deste. Mesmo que a história não seja real é ela quem aproxima o problema do aluno, estes com suas imaginações a vivenciam. É com a história que este problema deixa de ser um problema matemático abstrato. É a partir da história que Malba Tahan contextualiza o problema. Com estes entendimentos podemos afirmar que a resolução de problemas é uma metodologia essencial para a educação matemática. Propostas para a formação de professores Mesmo que a criatividade não seja uma habilidade própria do aluno e possa ser desenvolvida dentro da escola, analisamos que esta não pode se desenvolver sem que o aluno a queira. Um aluno que sente repulsa à matemática não irá se empenhar a resolver um problema sozinho provavelmente desistirá no primeiro obstáculo. Então é preciso que, para entender a matemática como forma de arte, o aluno tenha uma certa emoção positiva quando ouve falar nesta. A emoção se torna também elemento essencial no ensino e, novamente, esta parece estar além das capacidades do professor de desenvolvê-la. Não é possível obrigar a alguém gostar de matemática. Como analisa CURY(1994, p.26), “a influência das concepções e crenças sobre as práticas dos professores e sobre o desempenho dos alunos em Matemática parece ser aceita pela maior parte dos que pesquisaram o assunto”. Com isto, podemos acreditar que professores com atitudes negativas em relação à matemática, transmitirão estas atitudes à seus alunos (FARIA, 2006). Desta maneira, o aluno gostar ou não de matemática tem forte associação com a atitude que seus professores tinham em relação à ela. Assim, se torna fundamental a formação de professores que tenham atitudes positivas em relação à matemática. A matemática por mais bela que seja, ainda exige muito esforço e dedicação de quem quer que a estude. As diversas áreas desenvolvidas dentro dela que se desenvolveram nos últimos três séculos a tornaram extremamente complexa, seu aprendizado então se tornou algo que muitos acreditam ser apenas para pessoas demasiadamente estudiosas e geniosas. Por conta disto, há a crença de que a dificuldade no estudo da matemática é algo normal, disto segue uma dificultação desnecessária dentro muitos cursos dentro dos cursos de licenciatura em matemática. Há também a responsabilização do próprio aluno por todas as suas falhas, quase nunca se analisa se o professor não conseguiu ensinar algum conteúdo direito ou se as metodologias utilizadas nestes cursos não são adequadas. Estes, entre muitos outros, fatores dão ao aluno uma visão negativa de toda a matemática, esta se torna complexa demais para seu entendimento e um grande obstáculo para sua vida. FARIA, MORO e BRITO (2008), em um estudo analisaram que alunos do primeiro ano de licenciatura em matemática são o grupo que possui mais atitudes negativas em relação à matemática, comparados a outros três grupos: alunos do último ano de licenciatura em matemática, professores em atuação de um a 10 anos, e professores com mais de 10 anos de atuação. Preocupados que estas atitudes negativas possam não ser superadas ao longo da formação destes futuros professores e, com isto, podem ser transmitidas a seus futuros alunos, recomendam que “já no início do curso, (…) [deve-se] estimular o entusiasmo pela matemática e também o desejo de ensinar. (…) Deve haver uma preocupação com o modo como os professores universitários ensinam e como os estudantes de licenciatura aprendem.” (FARIA, MORO & BRITO, 2008, p.253) Uma atitude positiva do professor em relação à matemática pode não garantir que todos seus alunos também a compartilharão, mas influenciará muito como estes a reconhecem. Apenas um professor que enxerga a beleza da matemática poderá mostrar esta beleza a seus alunos e criar meios para que eles também a vislumbrem. Enxergar a matemática como uma forma de arte não é algo que compete apenas a professores do ensino básico, professores de cursos de formação de professores também precisam enxergá-la como tal e dedicar-se para que seus alunos também consigam ver a beleza que existe neste raciocínio humano. Conclusão A beleza da matemática vai muito além da espiral de Fibonacci, do número de ouro, de fractais ou de muitos outros elementos já considerados belos no campo da arte. Para um matemático é muito mais bela uma demonstração do Teorema de Pitágoras ou a relação de Euler. Apesar de ser difícil explicar de onde vem esta beleza estética da matemática pura e porque ela existe, qualquer pessoa que goste do estudo da matemática compreende muito bem esta característica tão inerente a ela. A questão da estética, que já foi abordada por muitos estudiosos ao longo da história da humanidade, continua sendo estudada até hoje por psicólogos e estudiosos da arte. Apesar de podermos ter uma experiência estética com qualquer objeto que encaramos com uma atitude estética, a estética da matemática vai mais além. A simplicidade com que resolvemos problemas complexos, a complexidade que possuem questões simples, o aparecimento inesperado de números conhecidos em sequências ou equações que nada tinham a ver com ele, entre muitos outros cenários da matemática, geram uma reação estética que poucas obras humanas ou elementos naturais alcançam, tornando o ato de se estudar e criar matemática uma verdadeira arte em si. A matemática como arte exige um ensino diferente daquele que teríamos se a olhássemos como apenas uma linguagem ou uma técnica usada para resolver problemas de nosso cotidiano. Perceber a estética da matemática se torna essencial para seu melhor ensino, alcançar isto não é simples para o professor. Aplicar fórmulas ou métodos prontos para resolver problemas análogos não gerará no aluno nenhuma reação estética, por outro lado, também não são apenas demonstrações de teoremas e a resolução de problemas complexos que podem suscitar esta reação. Um aluno poderá encontrar a beleza da matemática em sua própria intuição e na estruturação lógica de seu próprio pensamento, que pode ser incentivado pelo professor exigindo que este resolva problemas por conta própria, onde em vez de se utilizar de um método terá que estruturar sua própria resolução, utilizando e descartando hipóteses a partir de sua própria intuição. Quando o próprio aluno produz sua matemática este pode perceber a beleza que há nesta estrutura lógica. Além de servir como uma maneira de se desvendar a estética da matemática para os alunos, a resolução de problemas é uma ótima metodologia para estimular o desenvolvimento da criatividade destes. Vista por muitos como uma habilidade nata do indivíduo a criatividade, na verdade, é uma competência que só existe se estimulada e desenvolvida. Para Vigotski “a arte é o social em nós” (VIGOTSKI, 1998, p.315). A arte, além de nos emancipar como indivíduos, permitindo incorporarmos a sociedade através dela e, com isto, nos transformemos, a partir desta transformação, a arte também permite que transformemos nossa sociedade. Voltando à tese de ALBARRÁN (2017) sobre as bailarinas cegas e com baixa visão, a dança, que a princípio para estas bailarinas era apenas uma forma de recreação e divertimento, permitiu que estas se redescobrissem, percebendo a deficiência e a si mesmas de modo diferente. Todas chegaram a vivenciar, em grau maior ou menor, através da dança, como analisa a autora, o que Vigotski chamou de perejivanie, que a autora define como “um processo próprio da vida humana, e pode ser entendida como um acontecimento de forte carga emocional capaz de produzir mudanças profundas na vida de uma pessoa real.” (ALBARRÁN, 2017, p. 103). A deficiência deixou de ser uma limitadora das capacidades destas mulheres. A partir de aulas que respeitavam a deficiência e, com isto, transcorriam com uma metodologia diferente daquelas feitas para pessoas videntes, as bailarinas puderam se desenvolver plenamente, de tal forma que muitas tornaram-se bailarinas profissionais. Além das próprias bailarinas, a dança transforma também todos aqueles que as assistem. Em um dos relatos de uma das bailarinas, é citado que o público, ao assisti-las, observa a arte antes das deficiências. Festivais que antes se recusavam a deixá-las se apresentar por preconceito com suas deficiências, hoje possuem competições especificamente para esta categoria. Portanto, como a própria autora elabora percebemos que “as mudanças que marcam as vidas das bailarinas cegas ou com baixa visão transformam não apenas elas mesmas, mas toda uma sociedade ainda envolta em preconceitos.” (ALBARRÁN, 2017, p.171) Hoje, muitas pessoas, que possuem alguma deficiência ou não, deixam de aprender matemática por serem julgados, e se julgarem, como incapazes de entendê-la. Esta inaptidão não existe. O que ocorre é que, por causa da complexidade da matemática, poucas pessoas conseguem entender todos os processos lógicos por trás de um determinado conteúdo com apenas uma explicação. Com isto, a matemática deixa de ser uma criação lógica e se torna apenas uma repetição de técnicas e métodos que se tornam cada vez mais numerosos e complexos, tornando sua memorização cada vez mais difícil. A crença de que aprendem matemática apenas aqueles que possuem um certo dom se torna cada vez mais forte. A matemática abordada como forma de arte pode também servir como um objeto transformador de nós mesmos, nossos alunos e nossa sociedade. Da mesma forma que as bailarinas com deficiências visuais, puderam se desenvolver a ponto de chegar à profissionalização na dança, uma área antes acreditada como exclusiva para pessoas videntes, é possível educar para desenvolver o pensamento matemático em alunos que por qualquer motivo tenha dificuldade nesta área e, por isto, julga-se incapaz de aprendê-la. Para este desenvolvimento é preciso que, da mesma forma que as bailarinas cegas ou com baixa visão, use-se metodologias diferentes no ensino. Neste artigo já defendemos a resolução como uma metodologia que pode servir para isto. A repulsa pela matemática é muitas vezes originada de uma experiência que a pessoa teve com esta em algum momento de sua vida. É preocupante que ela já exista em muitas crianças antes mesmo de completarem metade do ciclo básico escolar. Transformar a figura que estas pessoas possuem da matemática poderá transformar, não apenas, a vida destas pessoas, que poderão sentir prazer com algo que antes lhe trazia apenas sentimentos ruins e utilizá-la como algo para compreender melhor o mundo, a sociedade e a si mesma, mas também transformar nossa sociedade. Com o aprendizado destas pessoas, ficará claro que o raciocínio matemático pode ser aprendido por todos e esta área deixará de ser vista com medo e antipatia por tantas pessoas. A matemática como forma de arte além de nos oferecer uma melhor compreensão sobre si, também abre oportunidades para a criação de um melhor ensino e, futuramente, de um melhor ser humano e uma melhor sociedade. “Sem a nova arte não haverá o novo homem. Não podemos prever nem calcular de antemão as possibilidades do futuro nem para a arte, nem para a vida.” (VIGOTSKI, 1998, p.329) Bibliografia: ALBARRÁN, Patrícia A. O.. O ofício da dança e a bailarina cega ou com baixa visão: um estudo a partir da perspectiva histórico-cultural. Orientador: Daniele Nunes Henrique Silva. Brasília. 2017. 198 p. BROLEZZI, A. C.. Criatividade, empatia e imaginação em Vigotski e a resolução de problemas em matemática. Educação Matemática Pesquisa (Online). v. 17, p. 791-815. 2015. CURY, H. N.. As concepções de matemática dos professores e suas formas de considerar os erros dos alunos. UFRGS. 1994. (Tese de doutorado precisa colocar mais algum dado?) EUSSE, K. L. G., BRACHT, V. & ALMEIDA, F. Q.. A prática pedagógica como obra de arte: aproximações à estética do professor-artista. Revista Brasileira de Ciência do Esporte. n. 38. p.11-17. 2016. FARIA, P. C..Atitudes em relação à matemática de professores e futuros professores. UFPR. 2006. (Tese de doutorado) FARIA, P. C., Moro, M. L. F. & Brito. M. R. F.. Atitudes de professores e futuros professores em relação à matemática. Estudos de Psicologia. n. 13. p.257-265. 2008. MALBA TAHAN. O Homem que Calculava. Editora Record. Rio de Janeiro. 55ª Edição. 2001. OLIVEIRA, P. A. J.. A aula como espaço epistemológico forte. Universidade de Lisboa. Departamento de Educação da Faculdade de Ciências. 2002. PEREIRA, M. V.. Contribuições para entender a experiência estética. Revista Lusófona de Educação, n. 18, p.111-123. 2011. PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução do grego, introdução notas e índices: Rodolfo Lopes. Editor: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos. 1ª edição. 2011. RUSSELL, Bertrand. Introdução à Filosofia da Matemática. Rio de Janeiro. Zahar Editores. 1966. VIGOTSKI, L. S.. Imaginação e criação na infância: Ensaio Psicológico – Livro para professores. Apresentação e comentários: Ana Luiza Smolka; tradução Zoia Prestes . São Paulo: Ática. 2009. VIGOTSKI, L. S.. Psicologia da arte. Tradução: Paulo Bezerra. Editora: Martins Fontes. São Paulo. 1998. ZENI, Semir, ROMAYA, J. P., BENINCASA, D. M. T. & ATIYAH, M. F.. The experience of mathematical beauty and its neural correlates. Frontiers in Human Neuroscience. Vol. 8. Artigo 68. Fevereiro/2014.

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