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"""" Obesidade Mental deldebbio | 26 de fevereiro de 2010 Por João César das Neves O prof. Andrew Oitke, catedrático de Antropologia em Harvard, publicou em 2001 o seu polêmico livro “Mental Obesity”, que revolucionou os campos da educação, jornalismo e relações sociais em geral. Nessa obra introduziu o conceito em epígrafe para descrever o que considerava o pior problema da sociedade moderna. Há apenas algumas décadas, a Humanidade tomou consciência dos perigos do excesso de gordura física decorrente de uma alimentação desregrada. É hora de refletir sobre os nossos abusos no campo da informação e do conhecimento, que parecem estar dando origem a problemas tão ou mais sérios do que a barriga proeminente. ” Segundo o autor, “a nossa sociedade está mais sobrecarregada de preconceitos do que de proteínas; e mais intoxicada de lugares-comuns do que de hidratos de carbono. As pessoas se viciaram em estereótipos, em juízos apressados, em ensinamentos tacanhos e em condenações precipitadas. Todos têm opinião sobre tudo, mas não conhecem nada. ” “Os ‘cozinheiros’ desta magna “fast food” intelectual são os jornalistas, os articulistas, os editorialistas, os romancistas, os falsos filósofos, os autores de telenovelas e mais uma infinidade de outros chamados ‘profissionais da informação’”. “Os telejornais e telenovelas estão se transformando nos hamburgers do espírito. As revistas de variedades e os livros de venda fácil são os “donuts” da imaginação. Os filmes se transformaram na pizza da sensatez.” “O problema central está na família e na escola. ” “Qualquer pai responsável sabe que os seus filhos ficarão doentes se abusarem dos doces e chocolates. Não se entende, então, como aceitam que a dieta mental das crianças seja composta por desenhos animados, por videojogos que se aperfeiçoam em estimular a violência e por telenovelas que exploram, desmesuradamente, a sexualidade, estimulando, cada vez com maior ênfase, a desagregação familiar, a permissividade e, não raro, a promiscuidade. Com uma ‘alimentação intelectual’ tão carregada de adrenalina, romance, violência e emoção, é possível supor que esses jovens jamais conseguirão viver uma vida saudável e regular”. Um dos capítulos mais polêmicos e contundentes da obra, intitulado “Os abutres”, afirma: “O jornalista alimenta-se, hoje, quase que exclusivamente de cadáveres de reputações, de detritos de escândalos, e de restos mortais das realizações humanas. A imprensa deixou há muito de informar, para apenas seduzir, agredir e manipular.” O texto descreve como os “jornalistas e comunicadores em geral se desinteressam da realidade fervilhante, para se centrarem apenas no lado polêmico e chocante”. “Só a parte morta e apodrecida ou distorcida da realidade é que chega aos jornais.” “O conhecimento das pessoas aumentou, mas é feito de banalidades. Todos sabem que Kennedy foi assassinado, mas não sabem quem foi Kennedy. Todos dizem que a Capela Sistina tem teto, mas ninguém suspeita para quê ela serve. Todos acham mais cômodo acreditar que Saddam é o mau e Mandella é o bom, mas ninguém se preocupa em questionar o que lhes é empurrado goela abaixo como “informação”. Todos conhecem que Pitágoras tem um teorema, mas ignoram o que é um “cateto.” Prossegue o autor: “Não admira que, no meio da prosperidade e da abundância, as grandes realizações do espírito humano estejam em decadência. A família é contestada, a tradição esquecida, a religião abandonada, a cultura banalizou-se e o folclore virou “mico”. A arte é fútil, paradoxal ou doentia. Floresce, entretanto, a pornografia, o cabotinismo (aquele que se elogia), a imitação, a sensaboria (sem sabor) e o egoísmo. Não se trata nem de uma era em decadência, nem de uma ‘idade das trevas’ e nem do fim da civilização, como tantos apregoam. ” “Trata-se, na realidade, de uma questão de obesidade que vem sendo induzida, sutilmente, no espírito e na mente humana. O homem moderno está adiposo no raciocínio, nos gostos e nos sentimentos. O mundo não precisa de reformas, desenvolvimento, progressos. Precisa sobretudo de dieta mental.”
MENTES, E NEM NOS DAMOS CONTA DISSO:
Estamos todos a ficar Hikikomori
Primeiro veio o aviso de Alvin Toffler, em «The Third Wave»
(1980): o desenvolvimento da tecnologia no sentido da
portabilidade e da sua utilização doméstica ia permitir que
o trabalho pudesse ser feito em casa e não, necessariamente, num
open space empresarial.
No despontar da década seguinte, esta já era uma realidade social e económica. Com um computador, ligação à Internet, um endereço de email e um telefone fixo ou um telemóvel, muitos de nós foram mandados dos escritórios para os seus apartamentos.
Depois, impôs-se a precariedade como forma de laboração: em vez de empregar os seus «colaboradores» (uma infeliz designação para referir que o assalariado apenas colabora, estando o núcleo das empresas nos seus serviços administrativos e de gestão), o sistema corporativo passou a encomendar serviços externos.
Surgia o estatuto de «trabalhador independente», precário, sem remunerações mensais fixas e sem direito a subsídio de desemprego no caso de os «clientes» se mudarem para a Tunísia ou para a China.
Finalmente, com a crise global dos sistemas monetários e dos mercados, veio a vulgarização do desemprego. Quem trabalhava em casa, ficou em casa sem o que fazer. A sua, se ainda a consegue manter, a casa dos pais, se nela havia um cantinho para onde pudesse voltar, ou apenas um quarto alugado na floresta de cimento.
Este processo que já leva três décadas conduziu não só a uma reformulação das noções de migração e de espaço em meio urbano, com a física e prática delimitação dos mesmos em termos de quilómetros e até metros, como também a um fenómeno de enclausuramento.
Se um tubarão obrigado a parar (preso numa rede, por exemplo) morre, no ser humano a clausura, seja por trabalhar no próprio local onde dorme e come, seja porque não tem trabalho nem dinheiro que lhe permita sair além da ombreira da porta, tem sido um factor de associabilidade e, no limite, de loucura.
E de loucura porque o próprio fechamento mingua. Começa pelo quarto e acaba dentro da cabeça. São muitos já os que vivem no interior das suas mentes, julgando vogar sem fato de astronauta em imensos cosmos.
Não ter espaço equivale-se, assim, a ter todo o espaço do universo…
Acresce que, a estes fatores de propiciação do encolhimento humano, e porque há quem não aguente a violência e o stress de viver em sociedade e de se manter «útil» no enquadramento de uma economia regulada pela competição, são cada vez mais aqueles que desistem de mover-se mesmo podendo fazê-lo.
Preferem fechar-se no seu abrigo a sete chaves, tornando-o numa prisão voluntária.
Se no Ocidente ainda não se reconhece a agorafobia como uma doença capitalista, no Japão identificou-se esta nova patologia com a designação Hikikomori, dando-lhe um maior significado: a palavra é traduzível por Retirada, o que quer dizer tudo.
Retirarmo-nos é, hoje, o mais radical, o mais revolucionário (ou talvez o mais reacionário) gesto que pode haver. É um «não» rotundo, ainda que, na maior parte dos casos, tenha sido induzido e não seja propriamente um ato de liberdade.
Há cada vez mais pessoas retiradas no mundo, Portugal incluído. Pessoas que raramente saem de casa, que procuram não distanciar-se demasiado. Porque se sentem inseguras, alvo de um possível ataque ou de um desalinhamento entrópico do normal funcionamento das coisas.
É claro que há vários tipos de Hikikomori. Os Retirados mais graves são aqueles que se recusam a sair da cama ou que levam horas debaixo do chuveiro. Os que, apesar de tudo, ainda não cortaram laços com o exterior «ligam-se» através da World Wide Web e das chamadas redes sociais.
Mas fazem-no porque se trata de uma abstração. Na realidade virtual, não há ninguém nem nada do outro lado. As pessoas a quem se possam dirigir não têm rosto, não existem. Não são apenas os Retirados que se encontram nessa situação: todos nós conversamos connosco mesmos, dentro do teatro alucinatório da Rede neuronal.
Estes Hikikomori são voyeurísticos, vêem o que está lá fora como um peep show. As existências, as rotinas e até as intimidades caught e busted dos outros, aqueles que ainda «funcionam», são cenas de um filme. Com o espetador de fora, afastado e resguardado.
E não são reais mesmo que uma réstia de razão tente confirmar a sua efetividade – trata-se, isso sim, de projeções imaginárias, realizadas numa interzone, uma zona de transição.
Para a sua argumentação, Sellars debruçou-se sobre os romances do escritor que previu isto tudo antes que qualquer outro o fizesse, o que aconteceu desde a década de 1960: J.G. Ballard.
Esse mesmo, o autor de ficção científica (de facto, muito mais do que desse género literário) que David Cronenberg («Crash») e Steven Spielberg («Empire of the Sun») transpuseram para o cinema. O menino inglês de Xangai que Hirohito meteu num campo de concentração e que, já adulto, experimentaria majestosas ereções ao observar os corpos estropiados que emergiam das chapas retorcidas de brutais acidentes de automóvel.
Tinha mesmo de ser um ficcionista a fazê-lo, e não um sociólogo, um psicólogo, um neurologista, um economista, um filósofo ou um pensador político. Só vê quem olha para mais longe, quem fantasia.
Em prosas como «Thirteen to Centaurus», «The Ultimate City», «Running Wild», «Rushing to Paradise», «Kingdom Come» e outras tantas, Ballard foi construindo o que Marc Augé designou por «antropologia da proximidade». Não-espaços submetidos à individualidade solitária…
O certo é que mesmo os estudiosos da obra de Ballard não compreenderam as implicações da condição Hikikomori tanto quanto o próprio. A chave para entender o micronacionalismo ballardiano está no seu conceito de «espaço interior», um lugar que escapa a todas as lógicas que a teoria da relatividade de Einstein procurou explicar.
Uma casa fechada não é mais do que a antecâmara de um casulo mental. Este mudo enlouquecimento Cronenberg e Spielberg nunca poderiam filmar. O que há a ver só pode ser visto por dentro.
Nesse «universo paradoxal, o sonho e a realidade fundem-se um no outro, e se cada um retém a sua qualidade distintiva, de algum modo assume o papel do seu oposto, de modo que o negro é simultaneamente branco», escreveu J.G. Ballard, o visionário da catástrofe.
E a partir de 21 de Fevereiro teremos mais duas obras ballardianas, desta feita nos domínios do experimentalismo eletroacústico. São lançados, numa edição conjunta Soopa/Fundação de Serralves, o CD «Irregular Characters» de Marc Behrens e o DVD «Mundo de Cristal, Máquina da Selva», de Jonathan UIiel Saldanha. Em ambos os casos resultando de participações num ciclo dedicado por Serralves, em 2010, ao escritor.
Refugiem-se nos vossos lares, se não têm outra hipótese, mas oiçam e vejam o que aqui vai. O disco do músico alemão residente no Porto inclui um booklet com uma série de boas histórias de sua autoria, com personagens à Ballard.
No despontar da década seguinte, esta já era uma realidade social e económica. Com um computador, ligação à Internet, um endereço de email e um telefone fixo ou um telemóvel, muitos de nós foram mandados dos escritórios para os seus apartamentos.
Depois, impôs-se a precariedade como forma de laboração: em vez de empregar os seus «colaboradores» (uma infeliz designação para referir que o assalariado apenas colabora, estando o núcleo das empresas nos seus serviços administrativos e de gestão), o sistema corporativo passou a encomendar serviços externos.
Surgia o estatuto de «trabalhador independente», precário, sem remunerações mensais fixas e sem direito a subsídio de desemprego no caso de os «clientes» se mudarem para a Tunísia ou para a China.
Finalmente, com a crise global dos sistemas monetários e dos mercados, veio a vulgarização do desemprego. Quem trabalhava em casa, ficou em casa sem o que fazer. A sua, se ainda a consegue manter, a casa dos pais, se nela havia um cantinho para onde pudesse voltar, ou apenas um quarto alugado na floresta de cimento.
Enclausuramento
Este processo que já leva três décadas conduziu não só a uma reformulação das noções de migração e de espaço em meio urbano, com a física e prática delimitação dos mesmos em termos de quilómetros e até metros, como também a um fenómeno de enclausuramento.
Se um tubarão obrigado a parar (preso numa rede, por exemplo) morre, no ser humano a clausura, seja por trabalhar no próprio local onde dorme e come, seja porque não tem trabalho nem dinheiro que lhe permita sair além da ombreira da porta, tem sido um factor de associabilidade e, no limite, de loucura.
E de loucura porque o próprio fechamento mingua. Começa pelo quarto e acaba dentro da cabeça. São muitos já os que vivem no interior das suas mentes, julgando vogar sem fato de astronauta em imensos cosmos.
Não ter espaço equivale-se, assim, a ter todo o espaço do universo…
Acresce que, a estes fatores de propiciação do encolhimento humano, e porque há quem não aguente a violência e o stress de viver em sociedade e de se manter «útil» no enquadramento de uma economia regulada pela competição, são cada vez mais aqueles que desistem de mover-se mesmo podendo fazê-lo.
Preferem fechar-se no seu abrigo a sete chaves, tornando-o numa prisão voluntária.
Se no Ocidente ainda não se reconhece a agorafobia como uma doença capitalista, no Japão identificou-se esta nova patologia com a designação Hikikomori, dando-lhe um maior significado: a palavra é traduzível por Retirada, o que quer dizer tudo.
Retirarmo-nos é, hoje, o mais radical, o mais revolucionário (ou talvez o mais reacionário) gesto que pode haver. É um «não» rotundo, ainda que, na maior parte dos casos, tenha sido induzido e não seja propriamente um ato de liberdade.
Há cada vez mais pessoas retiradas no mundo, Portugal incluído. Pessoas que raramente saem de casa, que procuram não distanciar-se demasiado. Porque se sentem inseguras, alvo de um possível ataque ou de um desalinhamento entrópico do normal funcionamento das coisas.
É claro que há vários tipos de Hikikomori. Os Retirados mais graves são aqueles que se recusam a sair da cama ou que levam horas debaixo do chuveiro. Os que, apesar de tudo, ainda não cortaram laços com o exterior «ligam-se» através da World Wide Web e das chamadas redes sociais.
Mas fazem-no porque se trata de uma abstração. Na realidade virtual, não há ninguém nem nada do outro lado. As pessoas a quem se possam dirigir não têm rosto, não existem. Não são apenas os Retirados que se encontram nessa situação: todos nós conversamos connosco mesmos, dentro do teatro alucinatório da Rede neuronal.
Estes Hikikomori são voyeurísticos, vêem o que está lá fora como um peep show. As existências, as rotinas e até as intimidades caught e busted dos outros, aqueles que ainda «funcionam», são cenas de um filme. Com o espetador de fora, afastado e resguardado.
E não são reais mesmo que uma réstia de razão tente confirmar a sua efetividade – trata-se, isso sim, de projeções imaginárias, realizadas numa interzone, uma zona de transição.
Micronacionalismo e espaço interior
A estes pequeninos territórios psico-arquitectónicos chama o ensaísta Simon Sellars «micronações». Cada Retirado que se barrica na sala-de-estar é uma nação.Para a sua argumentação, Sellars debruçou-se sobre os romances do escritor que previu isto tudo antes que qualquer outro o fizesse, o que aconteceu desde a década de 1960: J.G. Ballard.
Esse mesmo, o autor de ficção científica (de facto, muito mais do que desse género literário) que David Cronenberg («Crash») e Steven Spielberg («Empire of the Sun») transpuseram para o cinema. O menino inglês de Xangai que Hirohito meteu num campo de concentração e que, já adulto, experimentaria majestosas ereções ao observar os corpos estropiados que emergiam das chapas retorcidas de brutais acidentes de automóvel.
Tinha mesmo de ser um ficcionista a fazê-lo, e não um sociólogo, um psicólogo, um neurologista, um economista, um filósofo ou um pensador político. Só vê quem olha para mais longe, quem fantasia.
Em prosas como «Thirteen to Centaurus», «The Ultimate City», «Running Wild», «Rushing to Paradise», «Kingdom Come» e outras tantas, Ballard foi construindo o que Marc Augé designou por «antropologia da proximidade». Não-espaços submetidos à individualidade solitária…
O certo é que mesmo os estudiosos da obra de Ballard não compreenderam as implicações da condição Hikikomori tanto quanto o próprio. A chave para entender o micronacionalismo ballardiano está no seu conceito de «espaço interior», um lugar que escapa a todas as lógicas que a teoria da relatividade de Einstein procurou explicar.
Uma casa fechada não é mais do que a antecâmara de um casulo mental. Este mudo enlouquecimento Cronenberg e Spielberg nunca poderiam filmar. O que há a ver só pode ser visto por dentro.
Nesse «universo paradoxal, o sonho e a realidade fundem-se um no outro, e se cada um retém a sua qualidade distintiva, de algum modo assume o papel do seu oposto, de modo que o negro é simultaneamente branco», escreveu J.G. Ballard, o visionário da catástrofe.
Nota final
Como não podia deixar de ser, há uma música Ballard e até uma música Hikikomori. Na área da pop e do rock encontram-na no «Closer» dos depressivos Joy Division, em «High Rise» dos pedradíssimos Hawkwind, em «Miss the Girl» dos Creatures de Siouxsie Sioux, em «Video Killed the Radio Star» e «Vermillion Sands» de The Buggles e em «Down in the Park» de Gary Numan, entre outros casos que vão de John Foxx até Madonna.E a partir de 21 de Fevereiro teremos mais duas obras ballardianas, desta feita nos domínios do experimentalismo eletroacústico. São lançados, numa edição conjunta Soopa/Fundação de Serralves, o CD «Irregular Characters» de Marc Behrens e o DVD «Mundo de Cristal, Máquina da Selva», de Jonathan UIiel Saldanha. Em ambos os casos resultando de participações num ciclo dedicado por Serralves, em 2010, ao escritor.
Refugiem-se nos vossos lares, se não têm outra hipótese, mas oiçam e vejam o que aqui vai. O disco do músico alemão residente no Porto inclui um booklet com uma série de boas histórias de sua autoria, com personagens à Ballard.
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