Este blog é pessoal "chupado"de outros. Os créditos podem ser "esquecidos". “O socialismo é uma finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias como se fosse possível chegar ao paraíso, mas você não chegará. Mas se não fizer essa luta, você cai no inferno." Antonio Cândido "Carpe diem quam minimum credula postero"
sábado, 27 de abril de 2013
Mlton Hatoum
lton Hatoum - O Estado de S.Paulo
Pegava o ônibus às cinco da manhã, atravessava vários bairros de São Paulo e chegava à rodoviária antes do amanhecer. Às vezes saltava na Avenida Ipiranga e andava por ruas que eu havia percorrido no mês anterior, gritando palavras pela liberdade. Só mais tarde alguém notava a ausência de um amigo, que podia estar encarcerado no edifício de tijolos aparentes ou em outra delegacia.
Fazia frio naquela madrugada de agosto, e lá se vai um quarto de século. Ainda vejo as mulheres na Rua do Triunfo, algumas sem agasalho, à espera de um carro, nem que fosse táxi. Há poucos homens nas ruas: bêbados caídos no Largo General Osório e trabalhadores humildes que se dirigem à Estação da Luz; alguns vão para onde vou: a rodoviária de São Paulo, coberta por gomos coloridos de acrílico, abrigo de tanta gente que vem de muito longe para sonhar e trabalhar aqui.
No guichê da viação Pássaro Marrom comprei a passagem para o Vale do Paraíba; depois, na tabacaria Citaba, conversei um pouco com o velho Edmundo. Quando um grupo de nordestinos se aproximou, o velho Ed lhes deu cigarros: que vendessem lá embaixo, na porta dos hotéis e na entrada da Sorocabana.
Caminhei a esmo pelas plataformas de embarque, tomei café e conhaque para matar de uma só vez o frio e o sono. Seis e cinco no relógio da torre da Sorocabana. Os gomos de acrílico filtravam uma luz baça: São Paulo talvez amanheça também para os passageiros insones e mendigos exaustos. Não longe dali, o edifício escuro e sinistro, vigiado por homens armados.
Comprei um jornal e desci à plataforma número quatro. Li as manchetes e observei os rostos na manhã ainda indecisa. Quando ia abrir o jornal, um ônibus verde metálico apareceu na plataforma A4 e parou. Destino: Brasília. Cortinas escuras vedavam várias janelas, e na última vi um rosto pálido, os óculos de lentes grossas e aros pretos, olhos azulados e meio embaçados. Ergui as mãos, sem ter certeza de que era ele. Não olhou para mim: parecia ausente. Me aproximei da janela: ele me olhou com tristeza ou cansaço e percebi que podia ser outro...
O motorista fechou a porta do ônibus, a fumaça escureceu a plataforma, o ronco do motor e uma buzina estridente anunciaram a partida. Ele ainda virou o rosto para o banco onde eu estava sentado, e pela última vez pensei que podia ser meu amigo.
Pouco depois, na beira da Via Dutra, vi trabalhadores agachados ao redor de uma fogueira. O dia cinza e frio de agosto não queria amanhecer...
Recordei que ele havia desaparecido em outubro de 1973, e eu viajava para Taubaté numa manhã de 1978. Ele não teria viajado livremente a Brasília, onde tinha sido caçado. Não voltaria à UnB, de onde fora banido para sempre.
A rodoviária não é mais ali, e o edifício grandioso e sinistro perdeu seus cárceres e corredores escuros. Os assassinos de Honestino andam soltos e impunes por aí? Ainda riem dos que foram torturados e jogados no fundo da terra calcinada? Ou são apenas fantasmas de uma história infame?
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