quinta-feira, 28 de março de 2013

Marighella

Marighella

by Pedro Henrique Gomes

Marighella não poderia ser um filme fácil, nem como documento histórico, tampouco como narração “biográfica”. E, de fato, o filme de Isa Grinspum Ferraz não se aborrece diante de toda complexidade que se anuncia. A ditadura enquanto tema, no entanto, caro ao documentário brasileiro, nunca aceita caricaturas. De homem que participou ativamente da resistência armada às forças opressoras instituídas pelo Estado após o golpe e mesmo muito antes do regime militar assumir oficialmente o discurso Nacional, Carlos Marighella é retratado tanto de uma perspectiva mais pessoal (Isa é sua sobrinha) quanto de uma vontade não de recolocar os objetos históricos a priori em “seus devidos lugares”, mas sobretudo de ressignificar a essência mesma da existência intelectual e política de um articulador (morto em 1969 pelas forças militares comandadas pelo delegado Fleury, em São Paulo, após troca de tiros) decisivo em amplas frentes à época do regime militar.
Memória de um tempo que pede para ser construída coletivamente, como um processo de liberdade de consciência (histórica e posterior a História), no cinema (mesmo porque ao menos um pouco atordoados estamos em relação às práticas dos torturadores, ainda impunes), não arrefece diante da disponibilidade da objetiva em registrar: negar as narrativas impostas, mediadas por coerção e violência, colocar em disputa com a história do telejornal a questão primordial da supressão dos direitos e da legitimidade da atividade política e humana. Marighella, o guerrilheiro de base teórica consistente e compatível com as ideias de resistência que a luta armada demandava, num contexto todo específico que, em meio ao caos, desejava o desejo: poder desejar, poder ser. Esse levante biográfico surge da boca de um time insuspeito, de Carlos Augusto Marighella e Clara Charf (filho e viúva de Marighella) a Antônio Cândido, entre outros.
A noção de ação política que alimentava os movimentos que participaram da luta armada, diferentemente dos grupos que propuseram uma “resistência pacífica gandhiana”, partia do pressuposto de que só o corpo a corpo poderia devolver a democracia, e com elas os direitos básicos, ao povo brasileiro. O guerrilheiro urbano bebeu de fontes as mais diversas para compor seu referencial teórico, estético e político. Nos anos 1950, foi a China acompanhar de perto a Revolução Cultural; participou, em Cuba, da I Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade; escreveu um livro sobre Che Guevara; e, com o MR-8, se envolveu com as atividades que culminaram no sequestro do embaixador Charles Elbrick. É claro que estamos pontuando apenas algumas situações nas quais Marighella teve participação direta, mas já vemos que não é pouco. Um personagem e tanto! Um personagem, sobretudo, da História, pertencente à memória que vamos fazendo dela.
Entretanto, no filme de Isa Grinspum há desvios um tanto atrapalhados permeando as entrevistas, como a inserção de trechos de outros filmes para servirem de ilustração, mas que funcionam como muletas abertas a despotencialização do registro. Se por um lado a impressão pessoal da diretora sobre a matéria filmada (narrador-onisciente), a correlação de afetividades e intimidades que nos são evidentes, não se sobrepõem as necessidades históricas diante do objeto da narração, todavia não superam a caricatura no ambiente da representação formal das ideias. Já basta a força dos relatos e da própria “questão Marighella”, somadas a ocorrência bastante presente do imaginário construído a partir do mosaico de apontamentos e histórias que vão costurando os depoimentos. A beleza de Marighella age conscientemente captando os fragmentos desse espaço único de resgate que é o campo da memória cinematográfica: o lar dos deuses. O gesto belo (lembrem de Holy Motors, 2012) é continuar abrindo e nunca encerrando as possibilidades narrativas e, precisamente por serem diferentes, do papel do narrador.
(Marighella, Brasil, 2012) De Isa Grinspum Ferraz. Com Clara Charf, Antônio Cândido, Lázaro Ramos, Carlos Augusto Marighella.
Publicado originalmente no Papo de Cinema.

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