Marighella
Marighella não poderia ser um
filme fácil, nem como documento histórico, tampouco como narração
“biográfica”. E, de fato, o filme de Isa Grinspum Ferraz não se aborrece
diante de toda complexidade que se anuncia. A ditadura enquanto tema,
no entanto, caro ao documentário brasileiro, nunca aceita caricaturas.
De homem que participou ativamente da resistência armada às forças
opressoras instituídas pelo Estado após o golpe e mesmo muito antes do
regime militar assumir oficialmente o discurso Nacional, Carlos
Marighella é retratado tanto de uma perspectiva mais pessoal (Isa é sua
sobrinha) quanto de uma vontade não de recolocar os objetos históricos a
priori em “seus devidos lugares”, mas sobretudo de ressignificar a
essência mesma da existência intelectual e política de um articulador
(morto em 1969 pelas forças militares comandadas pelo delegado Fleury,
em São Paulo, após troca de tiros) decisivo em amplas frentes à época do
regime militar.
Memória de um tempo que pede para ser
construída coletivamente, como um processo de liberdade de consciência
(histórica e posterior a História), no cinema (mesmo porque ao menos um
pouco atordoados estamos em relação às práticas dos torturadores, ainda
impunes), não arrefece diante da disponibilidade da objetiva em
registrar: negar as narrativas impostas, mediadas por coerção e
violência, colocar em disputa com a história do telejornal a questão
primordial da supressão dos direitos e da legitimidade da atividade
política e humana. Marighella, o guerrilheiro de base teórica
consistente e compatível com as ideias de resistência que a luta armada
demandava, num contexto todo específico que, em meio ao caos, desejava o
desejo: poder desejar, poder ser. Esse levante biográfico surge da boca
de um time insuspeito, de Carlos Augusto Marighella e Clara Charf
(filho e viúva de Marighella) a Antônio Cândido, entre outros.
A noção de ação política que alimentava
os movimentos que participaram da luta armada, diferentemente dos grupos
que propuseram uma “resistência pacífica gandhiana”, partia do
pressuposto de que só o corpo a corpo poderia devolver a democracia, e
com elas os direitos básicos, ao povo brasileiro. O guerrilheiro urbano
bebeu de fontes as mais diversas para compor seu referencial teórico,
estético e político. Nos anos 1950, foi a China acompanhar de perto a
Revolução Cultural; participou, em Cuba, da I Conferência da Organização
Latino-Americana de Solidariedade; escreveu um livro sobre Che Guevara;
e, com o MR-8, se envolveu com as atividades que culminaram no
sequestro do embaixador Charles Elbrick. É claro que estamos pontuando
apenas algumas situações nas quais Marighella teve participação direta,
mas já vemos que não é pouco. Um personagem e tanto! Um personagem,
sobretudo, da História, pertencente à memória que vamos fazendo dela.
Entretanto, no filme de Isa Grinspum há
desvios um tanto atrapalhados permeando as entrevistas, como a inserção
de trechos de outros filmes para servirem de ilustração, mas que
funcionam como muletas abertas a despotencialização do registro. Se por
um lado a impressão pessoal da diretora sobre a matéria filmada
(narrador-onisciente), a correlação de afetividades e intimidades que
nos são evidentes, não se sobrepõem as necessidades históricas diante do
objeto da narração, todavia não superam a caricatura no ambiente da
representação formal das ideias. Já basta a força dos relatos e da
própria “questão Marighella”, somadas a ocorrência bastante presente do
imaginário construído a partir do mosaico de apontamentos e histórias
que vão costurando os depoimentos. A beleza de Marighella age
conscientemente captando os fragmentos desse espaço único de resgate que
é o campo da memória cinematográfica: o lar dos deuses. O gesto belo
(lembrem de Holy Motors, 2012) é continuar abrindo e nunca
encerrando as possibilidades narrativas e, precisamente por serem
diferentes, do papel do narrador.
(Marighella, Brasil, 2012) De Isa Grinspum Ferraz. Com Clara Charf, Antônio Cândido, Lázaro Ramos, Carlos Augusto Marighella.
Publicado originalmente no Papo de Cinema.
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